sábado, 19 de setembro de 2020

Exercitando o olhar antirracista...

Tem momentos que me questiono se a branquitude é cínica, ou se o tanto de privilégios que possuem, agregados por séculos e séculos de domínio, invasões, expropriações e abusos, lhes dá uma sensação tão segura de que o mundo é assim, que não se permitem, ou melhor, não conseguem perceber o mundo real, lá fora...

Estava lendo sobre o posicionamento de uma Magistrada que considerou a campanha para Trainnes do Magazine Luiza preconceituoso (a Bayer também está fazendo a mesma seleção, mas ninguém questionou). A questão é que Dona Luiza Trajano, a Presidente do Magazine Luiza, que tem um trabalho sólido na questão de amparo e preservação da vida das mulheres, resolveu fazer um Programa somente para jovens Negros. Trainnes, futuros Gerentes e Diretores, não para limpeza ou venda de balcão...
Bom, este não é o primeiro programa que seleciona apenas jovens negros, e já houve questionamentos judiciais que apenas confirmaram a legalidade e necessidade de ações afirmativas, visto que o Mercado de Trabalho, diria, a sociedade que estamos inseridos, ainda nos vê como ocupantes de apenas lugares subalternos. Podemos ser faxineiras, cozinheiras, servir cafés, estarmos nos balcões de vendas e nos caixas das lojas. Uma ou outra, que se destaca muito, chega num cargo de chefia ou Gerência. Dirigir uma grande empresa, ser uma C.E.O., nossa, a raridade de todas as raridades...
Eu sei que para alguns a questão fica no raso do "mas competência não está na cor da pele". Sim, eu concordo! Pena que quando nós vamos para uma seleção, na disputa, muitos de nós, com excelente Currículo, muitas vezes melhores que nossos concorrentes, não ganhamos as vagas melhores. Não temos o perfil que a empresa busca, nossa apresentação não corresponde ao que a empresa quer ter de visibilidade... ou seja, nossa cara preta não é adequada, não combina com a imagem desejada por eles. Estranhamente, não vemos a branquitude achar isto preconceituoso... Já vi gente dizendo que é um direito da empresa selecionar o perfil que ela deseja ter, mostrar ao seu público... E este perfil é branco!
Vocês já treinaram o seu olhar antirracista?? Eu faço isto sempre que saio de casa, entro numa loja, olho as bancas de revista, os comerciais de TV. Sempre que entro nas Lojas Americanas, dou uma passada nas prateleiras das Barbies. É, eu adoro e tenho uma Afilhada que também gosta, e compro bonecas negras pra nós duas. As vezes dou sorte e acho uma ou outra boneca, que boto no cestinho bem ligeiro... Mas hoje me peguei olhando a prateleira de longe. Dezenas, centenas de bonecas brancas (loiras, morenas, cadeirantes, profissionais, magras, gordas, grandes, pequenas) e nenhuma Barbie negra, nem clara e muito menos escura.
Fui olhando outras bonecas e até tinham uma ou outra, daqueles bebezões, com uma entre 30 ou 40 bonecas, ou mais, todas brancas. Se, pelo menos, a quantidade fosse proporcional a população negra da cidade... poderíamos contemplar nossas meninas negras com presentes que as representam, que são próximas de seus fenótipos, dos fenótipos de suas famílias.
Para uma sociedade que busca um embranquecimento forçado, forjado na invisibilização e genocídio da população negra, que é a maioria numérica no Brasil (o país com maior população negra fora de África), pode parecer natural só ter brancos na TV, nos comerciais, nas prateleiras infantis, mas quando olhamos para as ruas, para os pátios das nossas escolas, a realidade visual que temos não é esta.
A branquitude, quando vê uma de nós se destacando, demonstra seu estranhamento de forma agressiva, desdenhando de nossas competências, questionando se deveríamos estar ali, ofendendo-nos de forma ampla e sem medo de punições. Afinal, infelizmente, pouquíssimos casas de Injúria Racial, ou os raríssimos enquadrados como Racismo, são levados adiantes, devidamente investigados, julgados e, mais raramente ainda, punidos. Já tentaram registrar uma queixa por Racismo? Há relatos tristes de perguntas inadequadas e tentativas insistentes de que desistissem da queixa, pois sempre dizem que "não foi bem isto que a pessoa quis dizer ou fazer". Uma re-violência, como fazem com as mulheres vítimas de abusos ou violência doméstica...
O que esta Magistrada está expressando é o estranhamento que toda a branquitude tem frente a algo que lhes retira o espaço social que eles entendem como sendo só seu. Porque eles entendem que a sociedade deve apenas representar o seu padrão estético, o seu fenótipo, o seu modo de ver o mundo, sua forma de se portar e existir, e até educar a todos. É o único padrão que entendem como ser o certo! Muitos se negam a nos entender como outra possibilidade de existir, como uma outra forma de viver e de ser. Há reações fortes até mesmo quando buscamos incluir nossos conhecimentos no Currículo Escolar, mesmo com ordenamentos jurídicos que nos amparam e embasam tais ações. Fora a demonização de nossas práticas culturais seculares, aqui entendidas como religiosidade, mas para nós, uma construção comunitária que inclui todos os aspectos existenciais. Dá algumas laudas só sobre este assunto...
O que entendo é que não podemos naturalizar tal exclusão, e questionar quando alguém ou uma corporação busca modificar os pesos desta balança, para formar uma nova classe média ou elite negra pensante e com condições de vida dignas, como a minoria branca tem. Existem muitos mais pessoas pobres negras, proporcionalmente, do que pessoas brancas. A pobreza tem cor neste país, e é resultado de uma falsa Abolição que não deu as devidas reparações e compensações pelos mais de 300 anos de escravização. Ao contrário dos colonos europeus, que receberam terras, sementes, verbas para investir em negócios e plantações, nossos ancestrais só receberam um pé na bunda... E foram empurrados para as periferias das cidades ou obrigados a permanecer nas lavouras, por não terem para onde ir, seguindo por mais várias gerações de exploração.
Acredito que precisamos afinar nosso olhar antirracista, manifestar nossa insatisfação com produtos ou imagens que não nos representam adequadamente, nem em estética nem em quantidade minimamente suficiente. Precisamos entender que isto também é racismo!! Que somos a maioria dos consumidores, dos trabalhadores, da população em si, e devemos ser tratados como tais, com respeito e atendendo nossas necessidades, inclusive visualmente!
Quero me sentir representada em todas as revistas, em todas as bonecas, em todas as lojas, em todos os comerciais, filmes, novelas e afins. Quero que nossas crianças se sintam parte desta comunidade, pois só assim serão verdadeiramente cidadãos, e isto se refletirá até nas pessoas que irão escolher para representá-los politicamente... E, é por isso que a branquitude não quer que isto ocorra na velocidade que gostaríamos, entendeu???
Fiquem espertos!! Sejam exigentes!! Não é favor, é cidadania!!

Mestra Patrícia da S. Pereira
19Set2020