sexta-feira, 27 de março de 2020

[RESENHA] "PEQUENO MANUAL ANTIRRACISTA", DE DJAMILA RIBEIRO

     Sinopse: Onze lições breves para entender as origens do racismo e como combatê-lo.
     Neste pequeno manual, a filósofa e ativista Djamila Ribeiro trata de temas como atualidade do racismo, negritude, branquitude, violência racial, cultura, desejos e afetos. Em onze capítulos curtos e contundentes, a autora apresenta caminhos de reflexão para aqueles que queiram aprofundar sua percepção sobre discriminações racistas estruturais e assumir a responsabilidade pela transformação do estado das coisas. Já há muitos anos se solidifica a percepção de que o racismo está arraigado em nossa sociedade, criando desigualdades e abismos sociais: trata-se de um sistema de opressão que nega direitos, e não um simples ato de vontade de um sujeito. Reconhecer as raízes e o impacto do racismo pode ser paralisante. Afinal, como enfrentar um monstro desse tamanho? Djamila Ribeiro argumenta que a prática antirracista é urgente e se dá nas atitudes mais cotidianas. E mais ainda: é uma luta de todas e todos.”

     Preciso e necessário: este é o manual antirracista de Djamila Ribeiro, lançado recentemente pela Companhia das Letras. Um apanhado de ideias que nos leva a reflexão sobre o racismo, tema que ainda precisa ser muito discutido em nosso país.
     Pequeno manual antirracista é bem no estilo dos livros de ensaio da escritora nigeriana Chimamanda Ngozie Adichie, Sejamos todos feministas (que inspira um dos capítulos do livro de Djamila, Sejamos todos antirracistas) e Para educar crianças feministas, um manifesto. Nas três publicações vigora o poder de comunicar com simplicidade assuntos que, em muitos casos, não paramos para pensar ou mudar nossas atitudes no dia a dia.
     O forte deste livro é propor ações concretas, partindo da nossa sociedade, através da reflexão. Angela Davis bem disse: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”. É um trabalho de formiguinha, mas que começa a ter resultado quando você muda o seu vocabulário excluindo expressões racistas (cabelo ruim, mercado negro, denegrir etc.), quando não só não ri de comentários racistas, mas passa a repreender esse tipo de comportamento em seu ciclo de amizades, por exemplo. Pequeno manual antirracista é um ótimo começo para quem nunca leu nada sobre racismo, mas sabe ele existe (com força) no Brasil. Para os já iniciados em leituras do assunto, há uma lista de referências com grande variedade de autores negros para se aprofundar no tema. Além disso, para todos os públicos, traz a vantagem de ser uma leitura rápida, mas abrangente sobre antirracismo, ótima fonte de embasamento para conversar com todo mundo.

“O objetivo deste pequeno manual é apresentar alguns caminhos de reflexão — recuperando contribuições importantes de diversos autores e autoras sobre o tema — para quem quiser aprofundar sua percepção de discriminações estruturais e assumir a responsabilidade pela transformação de nossa sociedade. Afinal, o antirracismo é uma luta de todas e todos.” (p. 15)

     Comprei o exemplar impresso autografado (uma promoção de pré-venda) e ele chegou justamente no Dia da Consciência Negra. Percebi, com satisfação, que seria o segundo ano consecutivo em que eu comemoraria este dia lendo um livro de Djamila Ribeiro (ano passado li Quem tem medo do feminismo negro?). Seria maravilhoso se, ao invés de compartilhar aquele vídeo antigo do Morgan Freeman, as pessoas pudessem aproveitar essa data para ler (ou ouvir/ver) autores negros e refletir sobre o racismo na sociedade brasileira, partindo de si mesmo. O Pequeno manual antirracista é uma ótima pedida (mas não espere o próximo 20 de novembro para ler este livro)!


Título: Pequeno manual antirracista
Autora: Djamila Ribeiro
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 136
Compre na Amazon: Pequeno manual antirracista.

terça-feira, 24 de março de 2020

RESENHA SANTOS, Sales Augusto dos. Educação: um pensamento negro contemporâneo. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. 300p.




RESENHA
                                                  
                                                              SANTOS, Sales Augusto dos. Educação: um pensamento negro contemporâneo. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. 300p.


     Entre os vários desafios da atualidade, a desconstrução do racismo ainda é um dos mais debatidos, apesar de ser combatido em vários espaços e ter ingressado na agenda política do país por meio de conquistas, tais como: a lei n. 10.639/2003, que inseriu o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares; a lei n. 11.645/2008, que inseriu o ensino de história e cultura indígena nos currículos escolares; a resolução CNE/CP n. 01, de 17 de março de 2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- -Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana; o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em 2009; a lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso na maioria das universidades e institutos federais no Brasil, estabelecendo o sistema de cotas; entre outras. 
     O racismo é identificado, apesar da naturalização em negá-lo, segundo Florestan Fernandes afirma em seu livro O negro no mundo dos brancos, como ainda muito existindo o “preconceito contra o preconceito”.Contudo, o cenário das desigualdades no Brasil é perverso e muito objetivo, seja na invisibilidade sobre como tais questões são abordadas, seja na indiferença em como os indivíduos negros são tratados e na desigualdade racial, a qual mantém entre a população negra o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) diferenciado daquele atribuído aos estados, segundo estudos do professor Marcelo Paixão no livro 500 anos de solidão: ensaios sobre as desigualdades raciais no Brasil (Appris Editora, 2013). 
     As garantias políticas conquistadas em prol da população negra refletem também a história individual e coletiva do negro/negra em pautas situadas em uma disputa que procura corrigir as desigualdades sofridas por essa população. Tal enfrentamento é abordado por Sales Augusto dos Santos em uma linha histórica com análise sociológica. O autor reconstrói as reinvindicações de agentes, movimentos e organizações negras com passos analíticos na e para a educação. A obra é composta, com maestria, de cinco capítulos distribuídos nas trezentas páginas do livro.
     O diferencial dessa obra consiste em trazer para o leitor o percurso de análises referenciadas pelo pesquisador como fundamentos para refletir sobre as raízes históricas do racismo no Brasil. Reconhecer esses pressupostos permite refletir sobre os espaços em que práticas racistas ainda inspiram debate e participação social com bases para o aprofundamento de questões e da desconstrução de tais práticas. 
     A obra inicia-se com o prefácio da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e afirma os direitos da população negra. O livro apresenta as categorias norteadoras, os fundamentos históricos e a tessitura da narrativa, para então o autor expor em seu primeiro capítulo as bases do combate ao racismo no sistema escravista. Nessa sequência, apresenta a atitude do negro/negra no centro do sistema escravista, quando este/esta não aceita ser tratado/tratada como mercadoria. A luta à margem do sistema escravista é mantida pela organização dos quilombos, indicando como fundamentais essas ações ao se unirem aos movimentos negros pós-escravismo na mobilização contra o racismo. 
     O destaque para o início do século XX fica para a imprensa negra, a Frente Negra Brasileira e a valorização da educação formal por meio da construção e afirmação da memória. O autor também destaca o importante papel do teatro experimental negro, circunscrevendo a arte, a estética e a cultura negra à educação formal em uma aliança para reescrever tais histórias e descolonizar os espaços materiais e simbólicos da arte e da cultura. 
     O segundo capítulo apresenta o panorama da ditadura e da pós-ditadura com a sublevação de movimentos políticos organizados no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, inclusive o movimento negro. Em uma ordem, na qual a expressão racista era negada pela harmonia entre as raças, encontra-se a valorização da estética negra, a denúncia contra atos discriminatórios e racistas. 
     A Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, em Brasília, foi decisiva para o governo dialogar sobre políticas públicas efetivas contra o racismo. Soma-se a isso a atuação de Abdias Nascimento na ampliação do ativismo da população negra em prol de políticas educacionais com acentuado relevo na agenda pública do país. 
     O terceiro capítulo aponta sobre a importância dos movimentos negros no debate para a implementação de cotas em um diálogo contínuo, mudando o rumo das políticas pensadas para aquele momento. A lei n. 10.639/ 2003, alterada pela lei n. 11.645/2008, é importante para a valorização étnico-racial dos grupos de negros/ negras e dos povos indígenas. 
     A luta dos movimentos negros brasileiros associada à pauta internacional de combate ao racismo insere, no quarto capítulo, a inclusão da questão racial na agenda da política brasileira. A criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR) pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, afirma que há discriminação racial contra negros no Brasil. A ação e o discurso são consoantes com as propostas para as políticas de ações afirmativas na redução da desigualdade racial. 
     No quinto capítulo do livro, o sociólogo apresenta o cenário político da última década para lastrear o movimento negro na ampliação de novos agentes antirracistas. Sales Augusto dos Santos apresenta um trabalho cuidadoso, entrelaçando levantamento histórico, análises sociológicas, no qual esboça as transformações  institucionais e sociais do Estado. Ainda, nesse mesmo capítulo, apresenta a motivação de um ideário antirracista e os bolsões racistas mantidos no seio de vários segmentos sociais, culturais e institucionais na atualidade. A obra intensifica as discussões sobre a questão racial brasileira e os agentes responsáveis e importantes nesse diálogo, com o objetivo de que tais debates sejam inseridos de maneira definitiva na agenda nacional do país. 


SOBRE A AUTORA
     
Rita de Cássia Moser Alcaraz é doutoranda em educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: rita.alcaraz1@gmail.com 

Recebido em 11 de setembro de 2015 
Aprovado em 21 de outubro de 2015


segunda-feira, 23 de março de 2020

Exposição de Máscaras "Africanas" não é ERER!!

Exposição de Máscaras "Africanas" não é ERER!! Esta afirmação te parece estranha?? Mas é muito comum e real!!
Vou contar uma historinha...
Uma vez fui chamada uma Escola de Ensino Fundamental e Médio, para fazer uma Palestra numa Formação de Professores. Chego na escola e os corredores estavam virados em uma Galeria de Arte - centenas de desenhos em Ofício A4, xerografias de supostas máscaras "africanas" coloridas pelos alunos. Uma mistura de cores, desenhos, técnicas... Mas faltava uma coisa bem simples: conhecimento do que aquilo se tratava!!
Uma das máscaras que olhei, me deu um arrepio! Eu já usei com meus alunos de B20, B30 e CP, na Rede que trabalho, mas sempre busquei saber a origem étnica, a história e o uso daquelas máscaras. Não as denomino "Máscaras africanas" pois sempre dá aquela visão eurocentrada e alienada de que o continente africano é um país único, de um único povo e uma única história. E isto não é e nunca foi verdade!!
Olhei para a Supervisora que me acompanhava e mostrava os trabalhos empolgada, e perguntei quem tina sido a professora que tinha trabalhado aquela máscara que me deu o arrepio, e ela chamou-a, toda animada. Eu tentei manter o sorriso gentil... Juro!!
A professora veio, toda feliz e solícita, e  eu perguntei se ela sabia de onde era aquela máscara e para que servia. Ela me olhou, com aquela velha cara de "ponto de interrogação" e me disse que era da África, e era um enfeite... Meu mundo girou naquele momento. Explico: era uma máscara mortuária, de uma etnia antiga, e serve para fazer o desligamento do corpo e do espírito, na hora da morte. Tipo forçar a "passagem" para a ancestralização, tornar-se um espírito ancestral.
Claro que não dei toda esta explicação naquele momento, mas pelas respostas evasivas daquela Professora, usei o exemplo para iniciar minha palestra. Obvio que não a citei, não expús a própria escola, mas usei de exemplo para demonstrar a necessidade de estudar, de entender, de buscar os significados corretos de tudo o que se usa em matéria de ERER - Educação para as Relações Étnico-Raciais.
Naquele momento, fiquei em dúvida se ela só tinha entrado na armadilha do conforto do lugar comum e alienação aos assuntos destas temáticas, ou se estava tentando se livrar de algum "capiroto kids" da sua sala... Sei lá! kkkkk
Bom, mas fica a mensagem: estude! Produza conhecimento de verdade! Saia do lugar comum, que é confortável, mas sempre nos leva a erros absurdos! Não caia na armadilha da superficialidade, pois isto contribui para a manutenção do racismo estruturante e institucional, que é exatamente o que estamos tentando derrubar. 
No racismo não existe muro pra ficar em cima, a chamada neutralidade: ou você é parte do problema ou parte da solução. Escolha seu lado!!

Resenha do livro: África e Brasil Africano para a sala de aula.

Confira a resenha da autoria de José Alexandre da Silva sobre o livro África e Brasil africano, da historiadora Marina de Mello e Souza.
Por José Alexandre da Silva [1]
Fonte: Africa em Nós
“África e Brasil Africano” é uma introdução à História da África, que tem a ver com o Brasil, escrita por Marina de Melo e Souza, professora de História da África da Universidade de São Paulo e estudiosa da cultura afro-brasileira. Num contexto em que a Lei 10.639 torna obrigatório o Ensino de História Africana e Afro-brasileira a obra ganha grande importância e vem ajudar a preencher uma lacuna no mercado editorial sobre o assunto. A presença, no processo editorial, do nome de Alberto da Costa e Silva, nosso mais respeitado estudioso de História da África, só vem trazer mais credibilidade à obra em discussão. Um livro que pode servir não apenas para professores e alunos que têm de se debruçar sobre a história dos afro-brasileiros nos bancos escolares, como também para quem quiser saber mais sobre a importância da História da África e da contribuição dos africanos na formação do nosso país.
A escrita do texto, realizada com clareza, é eficazmente concatenada com informações da produção acadêmica sobre o tema, além de trazer conteúdos tirados diretamente de fontes históricas como processos inquisitoriais, relatos de viajantes e processos criminais. Além do aspecto gráfico não deixar a desejar, dando um visual bastante agradável ao texto, o livro é repleto de mapas, fotografias, pinturas e gravuras criteriosamente referenciados ao final da obra. Outro recurso utilizado são as notas de rodapé, dando o significado de alguns termos específicos que poderiam confundir o jovem leitor. Já os boxes separados dos textos inserem descrições e comentários pertinentes que podem ser saboreados no momento em que o leitor melhor aprouver. O livro também vem acompanhado de um manual de exercícios com o objetivo de facilitar o trabalho do professor em sala de aula e a assimilação dos estudantes.
Como pontua a autora, “Abordar conteúdos que trazem para a sala de aula a história da África e do Brasil africano é fazer cumprir nossos grandes objetivos como educadores: levar à reflexão sobre a discriminação racial, valorizar a diversidade étnica, gerar debate, estimular valores e comportamentos de respeito, solidariedade e tolerância (…) levantar a bandeira de combate ao racismo e às discriminações que atingem em particular, a população negra, afro-brasileira e afro-descendente.” No afã de realizar tais objetivos a obra vai ser dividida em seis capítulos: 1) A África e seus habitantes, 2) Sociedades africanas, 3) Comércio de escravos e escravidão, 4) os africanos e seus descentes no Brasil, 5) O negro na sociedade brasileira contemporânea e 6) A África depois do tráfico de escravos.
No primeiro capítulo do livro, a autora vai descrever os aspectos geográficos do continente africano enfatizando a importância dos rios ao redor dos quais surgiram as primeiras sociedades complexas. No segundo capítulo, vai ser trabalhado a assunto de como se dividiam as sociedades africanas, das mais simples às mais complexas, seguido de uma breve descrição dos principais reinos. Nesse ponto fica marcado no texto a importância que tinham os chefes nessas sociedades, desde os chefes de família até os das aldeias e dos reinos e confederações. A autora também dá destaque a um aspecto de suma importância na constituição das sociedades africanas, o sobrenatural. Vejamos: “(…) nas sociedades africanas (…) toda a vida na terra estava ligada ao além, dimensões que só especialistas, ritos e objetos sacralizados podiam atingir”.[2]
O terceiro capítulo é um ponto alto da obra, uma vez que a autora vai dissecar como funcionava a escravidão no continente africano, antes e depois da chegada dos europeus, como esses teceram relações com os chefes locais para conseguir cativos, como esses eram capturados, transportados e comercializados. Segue também um conceito apropriado do termo escravidão: “(…) situação na qual a pessoa não pode transitar livremente nem pode escolher o que vai fazer (…) pode ser castigada fisicamente e vendida caso seu senhor ache necessário; (…) não é visto como membro completo da sociedade em que vive, mas como ser inferior e sem direitos (…)”.[3]
Já no quarto capítulo, amparada na brilhante produção acadêmica sobre escravidão no Brasil desde a década 1980 até nossos dias, a autora vai expor de forma agradável, porém rigorosa, as principais regiões fornecedoras de africanos escravizados para a colônia portuguesa, como esses se integraram ao seu novo mundo, como se relacionaram com seus senhores e também companheiros de destino mesmo esses não sendo nada conhecidos. Tendo que aprender uma nova língua, resistindo através da rebeldia, matando o senhor ou o feitor e se aquilombando, implementando formas veladas de resistência, mas não menos valorosas quanto às já citadas, tecendo laços de família e de compadrio, criando novas formas de expressão religiosa e de arte. Enfim, longo foi o caminho dos escravos até a liberdade.
No quinto capítulo, Marina de Melo e Souza vai construir uma imagem bastante acurada sobre o negro na atual sociedade brasileira. Vale apontar aqui a superação da idéia de raça, a contribuição dos africanos nas artes plásticas, na religião e na música. Também é importante frisar a visão da autora sobre as ações afirmativas que recentemente vêm sendo implantadas na sociedade brasileira: “(…) a garantia do acesso a posições às quais os afro-brasileiros estiveram sistematicamente excluídos é um começo na conquista de condições mais igualitárias para o desenvolvimento de todas as pessoas, independente de suas origens étnicas ou sociais”.[4]
O sexto e último capítulo trata da ocupação colonial do continente africano que veio a acontecer depois da extinção do tráfico atlântico num momento em que a importação de mão de obra já não era o que mais interessava às principais potências européias, mas sim a ocupação e domínio de um continente quase desconhecido e cheio de riquezas a oferecer na forma de matéria prima barata ao mundo industrial. A descolonização do continente, depois da segunda metade do século XX, abriu espaço para guerras fratricidas de luta pelo poder que deixaram suas marcas até os dias de hoje. Para completar o quadro, temos o surgimento do vírus HIV que veio como um flagelo para o continente que tenta se recompor. Para a autora, “(…) o grande desafio das sociedades africanas é manter o respeito à pluralidade e à diferença sem se fechar para as novidades que podem trazer benefícios às pessoas”.[5]
Mesmo nesse texto de valor, podemos perceber que a autora não consegue fugir, em pontos bem específicos, de formulações que já presenciamos de longa data nos manuais escolares e revelam nossa perspectiva – ainda – mais européia que africana. A observação e crítica de tais formulações são feitas por Anderson Ribeiro Oliva no momento em que analisa a produção de SCHMIDT.[6] Vejamos “(…) o continente é retratado hora como um obstáculo a ser superado para atingir o lucrativo mercado de especiarias do Oriente, ora como uma fonte de riquezas naturais, – ouro, marfim – ou de oferta de mão de obra – escravos”[7]. Acreditamos que no caso da obra aqui resenhada tais observações também podem ser adotadas guardadas as devidas proporções.
europeu, primeiramente o português, aparece como sujeito que contornou o continente que nesse momento aparece descrito como uma barreira. Barreira essa que vai sendo superada em cada momento histórico que determinado ponto é alcançado. Assim, o Cabo do Bojador é contornado em 1434, em 1445 é construída a primeira fortaleza que servia de base para o comércio com os povos locais e em “Bartolomeu Dias chegou ao extremo Sul do continente em 1489, e Vasco da Gama contornou a África e foi até a Índia em 1498”. [8] Nesse sentido, os fatos históricos e suas datas verificáveis, reforçam a construção da imagem do continente africano como obstáculo. Mas também é construída a imagem da África como fonte de riquezas, “Os centros de ação dos mercadores europeus na costa atlântica da África foram as regiões dos rios Senegal e Gâmbia, onde compravam escravos; da região do forte da Mina, onde os acãs comerciavam ouro com os portugueses; do golfo do Benim (…)”.[9]
Também no que se refere ao domínio colonial do século XIX, Marina de Melo e Souza, explica esse fenômeno amparada em duas ordens de argumento. Primeiro o de ordem econômica, contemplado nos benefícios comerciais da compra de matérias primas a baixos preços para o abastecimento das indústrias; segundo, o de ordem religiosa e civilizatória, de acordo com o qual a evangelização cristã e o modelo de vida ocidental eram grandes benefícios levados aos africanos. Argumentações plausíveis e que também nos são conhecidas de longa data, porém, não levam em consideração o papel dos próprios povos africanos nesse processo em que não apenas foram dominados, mas que seus territórios foram ocupados militarmente. Nesse sentido, um panorama diferente nos é apresentado por Ana Mónica Lopez e Luiz Arnaut,[10] noutro livro introdutório sobre História da África, que leva em consideração a participação dos africanos nesse processo, amparados num viés interpretativo denominado ‘teoria da dimensão africana’.
O argumento dos dois autores segue na linha de que a conquista e ocupação militar do continente africano se deu e foi acelerada pela resistência que os europeus encontraram dos africanos no que se referia às relações comerciais vantajosas. Assim, o que não era conseguido pela diplomacia ou pelos comerciantes, o era pela força das armas de fogo e maior efetivo militar. A manutenção de tal estado de coisas exigiu a ocupação por meio de soldados e organismos burocráticos que em muitos casos também incorporaram os chefes locais. Esses, em muitos casos, eram cooptados pela dominação colonial e já em outros continuavam resistindo ao lado de seu povo, mesmo que de forma velada.[11]
Acreditamos que África e Brasil africano merece ser lido, utilizado nas salas de aula e também que os professores estão aptos para incorporar as críticas acima tanto quanto fazer as suas próprias com o objetivo de melhor aproveitar o material. Mesmo já se tendo decorrido dois anos da data de sua publicação, podemos ter a certeza de que esse livro é uma contribuição literária importante para um país que durante muito tempo tentou mascarar, ocultar ou esquecer suas origens. Importância que foi reconhecida na versão de número 49 do Prêmio Jabuti, em 2007, o de maior tradição no meio literário, quando a obra aqui resenhada foi a primeira colocada na categoria Didático e Paradidático de Ensino Fundamental ou Médio.
[1] Professor de História do Ensino Fundamental e Médio, Secretaria de Estado Educação do Paraná (SEED-PR), Ponta Grossa PR. e-mail: alexandre875@hotmail.com
[2] SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006 (p. 44).
[3] Idem, p. 47.
[4] Idem, p. 144.
[5] Idem, p. 169.
[6] SCHMIDT, Mário Furley. Nova história crítica. Nova Geração, São Paulo, 1999.
[7] OLIVA, Anderson Ribeiro. A história da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos. Ano 25, nº3, 2003, p. 446.
[8] SOUZA. Idem, p. 28.
[9] Idem, p. 29.
[10] ARNAUT, Luiz. LOPEZ, Ana Mónica. História da África: uma introdução. Crisálida, Belo Horizonte, 2005.
[11] Idem p. 57-66.
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