quinta-feira, 30 de julho de 2020

"O conceito de branquitude: reflexões para o campo de estudo"

O CONCEITO DE BRANQUITUDE: REFLEXÕES PARA O CAMPO DE ESTUDO

Priscila Elisabete da Silva 
(excertos)


     A ORIGEM DO CONCEITO DE BRANQUITUDE

     Antes de caracterizar o conceito de branquitude, cabe apresentar, ainda que brevemente, um histórico sobre seu surgimento.
     Os estudos críticos da branquitude nasceram da percepção de que era preciso analisar o papel da identidade branca enquanto elemento ativo nas relações raciais em sociedades marcadas pelo colonialismo europeu. Percepção esta que esteve presente nos estudos de intelectuais como W.E.B. Du Bois (1920, 1935); Frantz Fanon (1952), Albert Memmi (1957), Steve Biko (1978) e Alberto Guerreiro Ramos (1957), hoje compreendidos como precursores dos estudos sobre a branquitude (CARDOSO, 2008; 2010 e 2014). Tais intelectuais, em diferentes contextos históricos e sociais, chamaram a atenção para os efeitos da colonização e do racismo na subjetividade não só do negro, mas, sobretudo, do branco. Leitura que desafiava à interpretação unívoca a qual via o negro como "objeto de estudo", "tema de estudo" privilegiado para compreensão das relações raciais.
     Seguindo esse lastro, na década de 1990, intelectuais norte-americanos iniciaram uma reflexão sistemática sobre o fenômeno da branquitude e seus efeitos. O tema difundiu-se rapidamente por diferentes áreas de estudo (direito, arquitetura, geografia, antropologia, sociologia, psicologia). "A formulação e a aplicação do conceito de branquitude alterou o modo como se pesquisava a categoria "raça" na sociedade estadunidense" (CARDOSO, 2008, p. 174). A partir de então, o branco emerge como "objeto de análise" para compreensão da dinâmica das relações raciais deste país. Esforço que deu origem ao que ficou conhecido por

[...] acumular uma quantidade substancial de conhecimento, explorando o significado da análise da branquidade como uma construção social, cultural e histórica. Esse trabalho se caracterizou por várias tentativas para situar a branquidade como uma categoria racial e analisá-la como um lócus de privilégio, poder e ideologia. Além disso, esse trabalho procurou examinar criticamente de que modo a branquidade, como identidade racial, é experenciada, reproduzida e tratada pelos homens e mulheres brancos que se identificam com suas pressuposições e valores. (GIROUX, 1999, p. 101).

     Cardoso L. (2008), Ruth Frankenberg (2004) e David R. Roediger (2004) destacam o diálogo desses pesquisadores com os estudos culturais e com a teoria feminista. Segundo Cardoso L. (2008), os estudos críticos da branquitude nos Estados Unidos apresentam duas vertentes principais: "a primeira linha de estudos críticos da branquitude propõe a reconstrução da raça branca, mantendo-se uma sociedade racializada com a supressão das hierarquias sociais", já à segunda "subjaz o projeto de uma sociedade não racializada". (CARDOSO, 2008, p. 175). Nas palavras do autor:

[Na primeira linha] sustenta-se que o ideal do ativismo e da teoria anti-racista consiste em suprimir a identidade racial branca em sua inclinação subjugadora, forjando uma identidade racial anti-racista e isenta de culpa [...]. A proposta dessa linha de estudos seria resignificar e reconstruir a identidade racial branca que, sem deixar de ser branca, deixaria de possuir traços racistas. Não se pressupõe, portanto, a supressão da diferença e sim o fim da hierarquia entre os diferentes que resulta no favorecimento de uns em detrimento de outros [...]. (CARDOSO, 2008, P. 174).

     Já a segunda,

[...] sustenta que a identidade racial branca assim como foi construída pode ser desconstruída, defendendo a abolição da ideia de raça branca [...]. Parte-se do pressuposto de que a pertença étnica e racial branca é uma construção histórico-social e a resolução dos problemas sociais advindos dessa identidade cultural resolve-se com sua supressão. Esta linha de teóricos críticos não está convencida da possibilidade de expurgar o traço racista da identidade racial branca, portanto, propõe a abolição da branquitude e, por via de consequência, a abolição da negritude. (CARDOSO, 2008, p. 174-175).

     O que está de fundo tanto numa discussão quanto na outra é a compreensão e superação dos efeitos da branquitude nas relações sociais contemporâneas. Os resultados dos estudos empreendidos até então demonstram que a branquitude deve ser interpretada como elemento resultante da estrutura colonialista que, por sua vez, "configurou, até hoje, apesar do sucesso dos movimentos anticolonialistas da libertação" (WARE, 2004, p. 08); a branquitude é assim entendida como resultado da relação colonial que legou determinada configuração às subjetividades de indivíduos e orientou lugares sociais para brancos e não brancos. Conforme assinala o sociólogo Valter Silvério: 

Esta consciência silenciada ou experiência branca pode ser definida como 'uma forma sócio-histórica de consciência' nascida das relações capitalistas e leis coloniais, hoje compreendida como 'relações emergentes entre grupos dominantes e subordinados'. Essa branquitude como geradora de conflitos raciais demarca concepções ideológicas, práticas sociais e formação cultural, identicadas com e para brancos, como de ordem 'branca' e, por consequência, socialmente hegemônica. (SILVÉRIO, 2002, p. 240-241).

     Ao analisar historicamente tal fenômeno, esse sociólogo marca o processo de sua formação a partir da relação entre colonizador e colonizado:

O encontro com o 'outro' (denominado índio, escravo, preto, negro, nomenclaturas estabelecidas para justificar sua desumanidade, invisibilidade e coisificação), não incluído como membro social, permitiu aos colonizadores anglo-europeus perceberem a branquitude como uma representação de identidade e ponto de referência para legitimar a distinção e a superioridade, assegurando assim sua posição de privilégio. (SILVÉRIO, 2002, p. 241).

     No mesmo sentido, o pesquisador Lúcio Otávio Alves Oliveira (2014), ao refletir sobre o processo de construção da identidade branca e suas implicações subjetivas, afirma que, em sociedades multiculturais, é possível identificar expressões da branquitude tendo em vista que o branco constitui sua identidade na oposição ao 'Outro'. Em suas palavras: "a branquitude emerge dissecando no outro aquilo que lhe parece estranho e indesejável". (OLIVEIRA, 2014, p.43). O 'Outro' (leia-se o não branco) torna-se, assim, balizador da identidade branca; ela, por sua vez, passa a ser reafirmada na oposição com o não branco. Processo que pode ser interpretado tanto no ponto de vista da necessária diferenciação para constituição da identidade, como pela perspectiva danosa apontada por Bento como "falsa projeção", isto é:

[...] o mecanismo por meio do qual o sujeito procura livrar-se dos impulsos que ele não admite como seus, depositando-os no outro. Aquilo, portanto, que lhe é familiar, passa a ser visto como algo hostil e é projetado para fora de si, ou seja, na'vítima em potencial'.(BENTO, 2009, p. 38).

     Nas sociedades marcadas pela herança colonialista, o negro é, necessariamente, essa "vítima em potencial", ou seja, aquele que é interpretado pelo branco como sua antítese (CARDOSO, 2014). Esse mecanismo perverso foi concebido para justificar uma hierarquia social pautada na ideia de superioridade racial. Característica das relações colonialistas, essa estrutura tem se mostrado capaz de resistir a diferentes contextos sociais sem perder sua essência, isto é, mantendo os privilégios e lugar de poder de um grupo étnico-racial específico autodeclarado "branco",
     Por ter sua histórica marcada pela expansão colonialista, podemos  afirmar a existência da branquitude em nossa sociedade (CARDOSO, 2014). Fato que muito recentemente tem sido analisado de maneira mais sistemática. Liv Sovik, estudiosa do tema na sociedade brasileira, destaca a importância desses estudos:

O interesse em analisar a branquidade não é a de traçar o perfil de um grupo populacional até então ignorado, mas de entender como, há tanto tempo, não se prestou atenção aos valores que o definem. O estudo da branquidade pode esclarecer as formas de suavizar os contornos de categorias raciais enquanto se mantém as portas fechadas para afrodescendentes. (SOVIK, 2004, p. 384).

     Como demonstrou o pesquisador Lourenço Cardoso (2008, 2010 e 2014), no Brasil os estudos sobre branquitude emergiram de forma sistemática a partir do ano 2000. O levantamento desses estudos indica as áreas de conhecimento que, primeiramente, preocuparam-se com o tema (sociologia, psicologia social e comunicação social). Os primeiros intelectuais que se ocuparam em entender o papel da identidade branca nas relações sócio-raciais em nosso país foram Alberto Guerreiro Ramos, Edith Piza, César Rossato e Verônica Gesser, Maria Aparecia Bento e Liv Sovik (CARDOSO, 2008).
     Esses primeiros trabalhos lançaram as bases para a interpretação do conceito de branquitude em nossa sociedade. Promoveram um importante deslocamento na interpretação sobre estudos raciais até então vigentes a partir da: a) inserção do debate no Brasil pela relação teoria-pesquisa social; b) problematização do viés interpretativo recorrente nos estudos sobre relações raciais, ao inverterem o sentido e colocarem o foco dos estudos na identidade racial branca; c) revisão dos conceitos fundamentais à interpretação de nossa sociedade como, por exemplo, mestiçagem e democracia racial, levando em consideração aspectos da branquitude; d) problematização da identidade racial branca como elemento de análise na produção intelectual. Além de contribuírem ao lançarem luz sobre questões até então majoritariamente interpretadas a partir de teorias e conceitos centrados nos arcabouços antropológicos e sociológicos.
     A partir da primeira década do século XXI, o tema branquitude tem chamado cada vez mais a atenção de novos pesquisadores, o que tem fortalecido o tema, constituindo-o como campo de pesquisa reconhecido por seus pares. A "atual geração" de pesquisadores da branquitude no Brasil tem contribuído não só para consolidar questões apresentadas pela "geração anterior", como também para abrir novos caminhos, tanto para o adensamento do conceito quanto para a construção de uma teoria sobre o tema. São também estudos que nos auxiliam a entender as características do conceito e suas implicações em nossa sociedade.

                      
                                  
MÜLLER, Tânia Mara Pedroso. CARDOSO, Lourenço.

2 comentários:

  1. Ainda é preciso aprofundar este debate na sociedade. Gostei muito da postagem e gostaria de ler mais sobre esta temática por aqui.

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  2. Necessitamos desses estudos e debates para tornar transparente falas e ações racistas que possam ser identificadas, interrompidas e suprimidas.

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